segunda-feira, 16 de junho de 2008

Almofadas, cigarros e alguns quilos de sal

Há três anos estavam juntos. Dois deles morando juntos. No começo de tudo, o processo cativo, a identificação. Os sintomas. O pedido, sem prolongas. Os beijos, o sexo. As músicas, os filmes, os bares. Os amigos, as viagens, caminhadas a dois, os braços dados, as conversas. Não gostavam de tudo na mesma proporção, não gostavam das mesmas coisas, sempre. Gostavam de muitas coisas que o outro gostava, e de muitas outras só porque o outro gostava. Vieram as brigas e os defeitos, e o amor cresceu. Um tempo depois vieram mais brigas, mais defeitos, o ciúme, as contas, obrigação e intimidade, os mimos, as manhas e as diferenças da criação familiar; a liberdade, o mau humor pela manhã. Era o ápice do sentimento, o grau mais elevado do amor, onde se sabiam por completo. Eles já não tinham reservas, não tinham mais defesas. Então veio a posse, o cansaço, a invasão, as brigas e os defeitos se tornaram maiores que o amor maior, que apesar de tudo, ainda existia, insuficiente. Conversaram uma noite toda, sem choro, sob uma luz fraca, fumando e bebendo, sabe-se lá o que. Assim que terminaram, ele foi embora, caminhava com as mãos no bolso, pensando longe. Ela deixou-se cair encostada ao balcão da cozinha, e abraçando os joelhos, veio o dilúvio.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Baudelaireando


É preciso estar sempre embriagado.

Eis aí tudo: é a única questão.

Para não sentirdes o horrível fardo

do Tempo que rompe os vossos ombros

e vos inclina para o chão, é preciso embriagar-vos sem trégua.

Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude,

à vossa maneira. Mas embriagai-vos.

E se, alguma vez, nos degraus de um palácio,

sobre a grama verde de um precipício,

na solidão morna do vosso quarto, vós acordardes,

a embriaguez já diminuída ou desaparecida,

perguntai ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro,

ao relógio, a tudo que foge, a tudo que geme,

a tudo que anda, a tudo que canta, a tudo que fala,

perguntai que horas são; e o vento, a onda, a estrela,

o pássaro, o relógio, responder-vos-ão:

'É hora de embriagar-vos! Para não serdes

os escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos:

embriagai-vos sem cessar! De vinho, de poesia ou de virtude,

à vossa maneira'

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Hora Certa informa

“Falta meia hora, vai dar.” Bateu o portão, guardou as chaves e conferiu o relógio. Saiu de casa preocupada, decidida a se decidir. Saiu fumante, sedentária. Apertava os passos mais que podia. Passou antes em algumas padarias e lanchonetes, verificou as estufas: nada que já não tivesse tido olhos um dia. Na gráfica, imprimiu o trabalho da faculdade. No Rei do Pão de Queijo, comprou dois, simples, sem recheio. “Vou levar”, colocou o trabalho no meio do livro, e na outra mão os pães de queijo, frios e murchos. Nem poderia recuperá-los – presunto-muçarela-microondas-humm, mais tarde, em casa.

Distraída que estava, quase foi pega por um carro na mão inglesa; nenhum Jude Law vindo em sua direção. Já no ponto de ônibus, enquanto fazia suas coisas habituais anti-tédio em ponto de ônibus – fumar, ter digressões sociológicas sobre os passantes, roer as unhas, cantar, comer – uma figura, daquelas que toda cidade tem, principalmente as pequenas, apresentou-se, estendeu a mão, logo sentou-se e pediu bem de perto, num tom choroso regado à pinga, que fizesse uma matéria sobre ele. Na folha em que esboçava versos torpes, soltos, conforme ele ditava, escreveu:

“Meu nome é Valdir Pereira, gosto de cantar muito. Queria ser um cantor muito lindo, pra muita gente, pra me ensinar ser alguém. Meu sonho é ver a Elis Regina. Parece que ela canta pra mim. Misericórdia, ela canta pra mim...” e se pôs a chorar.

Um pão de queijo pela metade e o outro intocado, juntos no saco de papel na sacola dentro da mochila, desgostosamente ali. Nem o bêbado quis, preferiu um cigarro. O ônibus apontou e ele pediu-lhe um abraço. Foi um abraço, um aperto de mão, três beijos no rosto, mais um abraço, e um respiro profundo assim que entregou o dinheiro ao cobrador. Sentou-se num banco de dois lugares vazios e foi lendo, lendo e pensando. Lendo e pensando, pensando. E pensando. Parou de ler.

Três fatores em sua vida não andavam bem, interferiam sem licença nos demais. A caminho da locação pra filmagem, distraída que estava, perguntou “que horas tem?”, (que tal todo o tempo do mundo, ahn?) E lá, com a câmera na mão, sentiu “é isso o que eu quero pra mim”. Voltou pra casa fumante e sedentária. As coisas mutáveis possíveis, sim, iriam mudar. Determinou isso. E tudo quanto determinava, acontecia.

domingo, 1 de junho de 2008

Do Livro dos Prazeres

"Lóri sentia às vezes uma saudade tão grande que era como uma fome, só passaria quando ela comesse a presença de Ulisses. Mas às vezes a saudade era tão profunda que a presença, calculava ela, seria pouco; ela queria absorver Ulisses todo. Essa vontade de ela ser Ulisses e de Ulisses ser ela para uma unificação inteira, era um dos sentimentos mais urgentes que tivera na vida. Ela se controlava, não telefonava, feliz em poder sentir."